segunda-feira, agosto 17, 2009

LULA E NIXON


Assisti, no último fim de semana, a Frost/Nixon, filme de Ron Howard sobre a famosa entrevista que o ex-presidente dos EUA, Richard M. Nixon, concedeu em 1977 ao apresentador britânico David Frost. Recomendo-o entusiasticamente. Poucas vezes vi um filme tão eloqüente, tão sagaz e inteligente, sobre um dos políticos mais controversos da História norte-americana e mundial no século XX. E, como tentarei mostrar mais adiante, poucas vezes houve obra tão politicamente oportuna, tão adequada à compreensão dessa época tenebrosa em que vivemos nessa terra de papagaios.

Primeiro vamos à história, para quem não a conhece: em 1977, Richard M. Nixon estava afastado do poder há três anos, após ter sido obrigado a renunciar para fugir ao processo de impeachment que lhe fora movido por sua participação no acobertamento do escândalo de Watergate – a tentativa mal-sucedida de agentes da Casa Branca de instalar aparelhos de escuta na sede do Partido Democrata, durante a campanha presidencial de 1972, ganha pelo republicano Nixon. Graças à tenacidade de um juiz rigoroso e de dois repórteres do Washington Post, Bob Woodward e Carl Bernstein, o caso resultou no maior escândalo político da História dos EUA, levando à descoberta de um rosário de crimes cometidos pelo presidente, de espionagem à obstrução da Justiça. Acuado pelas denúncias, não restou a Nixon nada mais a fazer senão renunciar à presidência em 1974, no único caso, até agora, de um presidente norte-americano que renunciou ao cargo, deixando um país traumatizado e o mundo atônito.

Três anos depois, beneficiado por um perdão presidencial, Nixon ensaiava um retorno à política. Um apresentador de TV britânico, David Frost, tem a idéia de entrevistar o ex-presidente, com o único propósito de ganhar uma dinheirama, mirando no ibope. Frost é fútil e despolitizado, com fama de playboy, e apresenta programas de fácil apelo popular. É um deslumbrado em busca de fama, que espera alcançar entrevistando Nixon. Após desembolsar do próprio bolso US$ 200 mil, ele consegue a entrevista, que Nixon espera sirva de trampolim para sua volta ao poder.

Os assistentes de Frost, porém, têm uma idéia diferente: esperam que a entrevista não vire uma rasgação de seda ou um palanque para Nixon, o político mais odiado, com exceção talvez de George W. Bush, que já ocupou a Casa Branca. “Há apenas uma coisa que interessa sobre Richard M. Nixon: uma confissão”, diz um dos produtores do programa a Frost. Inicialmente, Frost discorda, e as primeiras sessões da entrevista são totalmente dominadas por Nixon. Político experiente, ás da manipulação, ele consegue colocar Frost no bolso, esquivando-se das questões mais espinhosas. Ao perceber que, diante disso, os patrocinadores se retraem, e que ele corre o risco de perder os programas que mantém na TV, Frost se desespera. Mas um telefonema no meio da noite o faz mudar de idéia sobre a entrevista, e o convence de que Nixon precisa ser desmascarado.

É então que chega o último dia da entrevista, em que o tema é Watergate. Frost havia estudado de forma aprofundada as gravações das fitas do caso, em que Nixon aparece cometendo uma série de crimes, instruindo seus assessores a rasgar a lei e subornar testemunhas. O que começa, então, em vez da conversa amena dos primeiros dias, é um verdadeiro duelo, o mais demolidor já visto na TV sobre um político norte-americano: com as anotações em mão, Frost encosta Nixon na parede, apresentando os fatos do escândalo e forçando o ex-presidente a dizer o indizível. De início, Nixon faz o que todo político faz em uma hora dessas, tentando tergiversar e mudar de assunto. Mas, diante da insistência do entrevistador, não resiste e acaba confessando, dando todo o serviço. Perguntado se não considera delito o que fez, Nixon esbraveja, num acesso de sinceridade: “Se o presidente faz, então é legal”. Nesse momento, ele percebe que tinha diante de si um adversário à altura, e que sua vida política chegara ao fim. “Minha carreira política acabou”, diz em seguida, melancolicamente. Antes, faz o impensável: confessa que errou, e humildemente pede desculpas ao povo americano por tê-lo decepcionado. “Dick Trapaceiro”, o político arrogante e maquiavélico, dá lugar a um sujeito destruído, digno de compaixão. Ao final, a câmera foca o rosto de Nixon, abatido e cansado, com o mão no queixo, pensativo. O retrato perfeito da derrota. A brilhante interpretação de Frank Langella como Nixon, que lhe valeu uma indicação ao Oscar de melhor ator, dá mais brilho à cena.

A entrevista Frost/Nixon entrou para a História como um momento único na televisão, pois mostrou, pela primeira e única vez, a face humana, sem máscaras, de um ex-presidente que todos pareciam odiar. Todos sabiam que Nixon era culpado, mas faltava a admissão de culpa. Faltava a confissão. E ela veio, arrancada a fórceps pelo mais improvável dos entrevistadores. Algo assim como Paulo Maluf admitindo ter desviado dinheiro dos cofres públicos diante de Gugu Liberato. Eu falei Maluf? Não, a comparação não é adequada. A confissão de Nixon a Frost só se compara a Lula reconhecendo ter sido ele o chefe do mensalão no Programa do Ratinho.

É aqui que entra a importância do filme de Ron Howard para os tempos atuais e para o Brasil atual. Nixon tem alguns pontos em comum e algumas diferenças com Lula. As trajetórias dos dois políticos, para começo de conversa, guardam algumas semelhanças: filho de um dono de posto de gasolina da Califórnia, Nixon sempre se sentiu um enjeitado, um forasteiro num mundo de esnobes. Era um ressentido, que não cansava de se queixar de como os filhinhos-de-papai da Costa Leste o desprezavam, por sua origem humilde (dois irmãos seus morreram de tuberculose na juventude) e por ter dado duro para subir na vida, ao contrário de Kennedy, por exemplo, o que talvez explique sua paranóia. Do mesmo modo, Lula faz questão de frisar, em seus discursos, sua origem pobre de filho de retirantes nordestinos, exibindo-a orgulhosamente, assim como sua pouca instrução, como um certificado de “brasilidade”, de que é alguém “do povo” (quanto a ter dado duro, é outra questão).

Assim como há semelhanças, há diferenças importantes. Nixon era uma figura trágica, um político paranóico que jamais conseguiu o que todo político deseja: ser amado, ser popular. Nisso ele contrasta com Lula, que ostenta índices de popularidade inéditos (graças principalmente ao assistencialismo e ao paternalismo estatal, mas isso é outra coisa). A começar por sua aparência física – ele parecia nervoso e pouco à vontade diante das câmeras, o que lhe valeu a derrota no debate presidencial para o bonitão John F. Kennedy em 1960 –, Nixon era uma ave estranha na política norte-americana, cada vez mais dominada por assessores de imagem e marqueteiros. Inseguro, ele sempre teve a imprensa como sua maior inimiga, a exemplo de Lula - mas, aqui, pode-se dizer que Nixon tinha alguma razão em queixar-se. Quando falava de sua infância humilde, Nixon causava repulsa pela tentativa piegas de manipulação emocional. Quando faz o mesmo, Lula arranca aplausos e lágrimas de platéias embevecidas. (Não por acaso, estão até fazendo um filme sobre sua vida: não esqueçam de levar um lenço.) Nixon, com todos os seus defeitos, tinha uma dimensão histórica. Já Lula é uma caricatura de homem público, beneficiado por décadas de adulação e condescendência para com sua figura, elevada à santidade.

A imprensa brasileira jamais tratou Lula como a norte-americana tratou Nixon, e a entrevista com David Frost mostra isso claramente. Ao contrário de Nixon, que podia dizer que, desde o primeiro dia de governo, teve a grande imprensa contra si, Lula é em grande parte uma criação da imprensa brasileira, que o poupou de críticas durante praticamente a metade de seu primeiro mandato – sua primeira entrevista coletiva ocorreu apenas um ano após sua posse, e desde então o governo tem tentado, de todas as maneiras, acabrestar a imprensa, que os petistas continuam chamando de “mídia golpista”. Pois a “mídia golpista” de que se queixam os devotos de Lula continua a poupá-lo, quando não a apoiá-lo abertamente, recusando-se a apurar irregularidades no atual governo. Falta-nos um David Frost para arrancar de Lula o que ele esconde de todos. Também, pudera: é difícil desconstruir um santo.

Até Nixon admitiu seus erros e pediu desculpas por eles. Lula, não. E, até por falta de quem o pressione, é improvável que o faça um dia. Sua defesa, embora mutante, é sempre a mesma: começou com o “é uma conspiração da mídia e das elites”, passou pelo “fui traído” e pelo “não sei de nada, não vi nada”, até chegar ao “todos fazem igual” que já se tornou um mantra dos governistas para fugir à responsabilidade. E não há quase ninguém no horizonte que se disponha a desmascará-lo e a fazê-lo confessar seus delitos. Nixon tentou abafar o que fizera, mas, acuado, teve de renunciar. Diante de um entrevistador aguerrido, confessou e pediu desculpas à nação. Difícil, para não dizer impossível, ver cena semelhante com Lula. Nixon era um escroque, mas tinha alguma grandeza. Lula, não. Resta apenas o escroque.

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