quinta-feira, junho 19, 2008

COMO ACABOU A DITADURA


Ernesto Geisel, Sylvio Frota e João Figueiredo: ditadura acabou por suas contradições internas


Comentei aqui, alguns posts atrás, um artigo de dois professores universitários sobre a luta armada nos "anos de chumbo" da ditadura militar no Brasil. O artigo, só para lembrar, era uma réplica chinfrim e rastaqüera a um outro artigo, do historiador Marco Antonio Villa, publicado na Folha de S. Paulo em 19/05. No artigo em questão, Villa desmonta eficientemente, e de maneira brilhante, um dos maiores mitos criados pela esquerda sobre o período: o de que a luta armada dos anos 60 e 70 teria contribuído, de certo modo, para "enfraquecer" o regime de 64.

Já refutei essa balela, que serve apenas para tentar incutir nas mentes incautas a falsa idéia de que a democracia brasileira é filha da esquerda armada - e de que todos nós, portanto, devemos prestar-lhe reverência. Agora vou me concentrar mais no artigo de Marco Antonio Villa.

O texto de Villa é, como já afirmei, excelente. Isso não me impede, porém, de fazer algumas observações ou reparações a ele. Não vou me referir à sua análise sobre a luta armada, que é perfeita. O que me chamou a atenção e, a meu ver, merece um tratamento mais crítico são os dois parágrafos que aqui transcrevo. Neles, ao refutar a tese esquerdista de que a luta armada ajudou a enfraquecer a ditadura, ele afirma:

[...] A luta pela democracia foi travada nos bairros pelos movimentos populares, na defesa da anistia, no movimento estudantil e nos sindicatos. Teve na Igreja Católica um importante aliado, assim como entre os intelectuais, que protestaram contra a censura. E o MDB, nada fez? E seus militantes e parlamentares que foram perseguidos? E os cassados?
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Quem contribuiu mais para a restauração da democracia: o articulador de um ato terrorista ou o deputado federal emedebista Lisâneas Maciel, defensor dos direitos humanos, que acabou sendo cassado pelo regime militar em 1976? A ação do MDB, especialmente dos parlamentares da "ala autêntica", precisa ser relembrada. Não foi nada fácil ser oposição nas eleições na década de 1970.

Tenho algumas ressalvas a fazer ao que está dito acima. Embora eu concorde com a opinião de Villa exposta em seu artigo, de que a luta armada não teve qualquer importância na restauração da democracia, creio ser um erro atribuir o mérito por isso aos movimentos ditos "legais" de oposição ao regime militar. Isso porque, se há um fator que não deve ser superestimado para explicar o fim da ditadura, são as pressões da chamada "sociedade civil organizada". Explico-me.

A ditadura militar não chegou ao fim por causa de nenhuma mobilização popular, mas devido às contradições do próprio regime dos generais. Seu término não ocorreu como resultado de nenhuma sublevação das massas, mesmo que de forma ordeira e pacífica, contra o arbítrio: foi, isto sim, o produto da própria evolução do regime, dividido, desde o primeiro dia do golpe, em "duros" e "moderados". Foram os primeiros, a "linha-dura", representados sobretudo nos governos Costa e Silva (1967-1969) e Emílio Médici (1969-1974), os principais responsáveis - com a ajuda da esquerda armada - pelo prolongamento da ditadura por mais de vinte anos. Por sua vez, foram os "moderados", organizados em torno da Escola Superior de Guerra (ESG) e nos governos Castello Branco (1964-1967) e Ernesto Geisel (1974-1979), os principais responsáveis pela abertura política.

A idéia de devolver o poder aos civis e restabelecer a normalidade constitucional estava presente já no próprio movimento que derrubou o governo esquerdista e populista de João Goulart, em 1964. Naquele momento, é bom lembrar, a totalidade da direita brasileira apoiou o golpe, inclusive a Igreja, a grande imprensa e a classe média. Tratava-se de afastar um governo subversivo e corrupto, que arrastava o País rumo a alguma forma de regime ditatorial de esquerda, e depois retomar a vida. O presidente Castello Branco assumiu prometendo eleições presidenciais em 1965 e deixar o governo em 31 de janeiro de 1966. Após o AI-2, porém, que extinguiu os partidos políticos e anulou as eleições, prorrogando o mandato de Castello, a situação mudou. Em 1967, com a subida ao poder de Costa e Silva, a linha-dura se instala no poder, obrigando-o a decretar, em 1968, o AI-5, que inaugura o período mais sombrio da repressão político-militar. Foi preciso esperar até o aniquilamento da luta armada de esquerda e a ascensão de Ernesto Geisel, em 1974, para que o regime, combalido pela crise do "milagre" econômico que lhe dava sustentação, começasse a dar sinais de esgotamento.

Foi a partir daí que teve início, de fato, a chamada abertura política "lenta, gradual e segura", controlada e levada adiante, desde o primeiro momento, pelo governo. De forma negociada, institucional, planejada, sem qualquer participação popular. É assim que ocorrem os principais avanços democráticos do período: fim da censura (1976), revogação do AI-5 (1978), Anistia (1979), reforma eleitoral (1979), eleições diretas para governadores de estados (1982), até culminar, em 1984-85, na campanha das diretas-já e na eleição - indireta - de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral.

Todos esses avanços, todas essas manifestações, só foram possíveis porque os militares as permitiram, em primeiro lugar. Se quisessem, poderiam ter mantido a censura e a repressão, assim como as eleições indiretas. Se não o fizeram, não foi porque estivessem acuados por nenhuma revolta popular generalizada, mas porque a redemocratização era um projeto há muito adiado, que já estava presente no próprio movimento de 64.

Quem contribuiu mais para o fim da ditadura no Brasil: os deputados Marcos Freire, Alencar Furtado e Lisâneas Maciel ou o general Ernesto Geisel, que em 1977 peitou e demitiu no ato o então Ministro do Exército, general Sylvio Frota, que queria manter a repressão e estava articulando um golpe? Quem teve um papel mais relevante: Ulysses Guimarães ou o general Golbery do Couto e Silva?

A resistência de muitos setores em admitir isso se deve, em parte, ao fato de que a transição política, no Brasil, obedeceu a um paradoxo: foi o governo do presidente pessoalmente mais autoritário e centralizador do ciclo militar, o general Geisel, que enquadrou a linha-dura e deu início ao processo de abertura democrática. E isso não foi feito por meio de consulta popular, de forma democrática: foi com murro na mesa mesmo. O AI-5, por exemplo, passou a ser usado contra os próprios militares contrários à distensão política. Não foi o culto ecumênico na Praça da Sé pela morte de Vladimir Herzog, em 1975, mas o gesto autoritário do general Geisel, que levou à queda do comandante do II Exército e ao enquadramento da extrema direita militar. Por trás desse gesto, não estavam quaisquer considerações humanitárias por parte do general-presidente, mas única e simplesmente a defesa intransigente da hierarquia e da disciplina contra a anarquia militar. Ninguém quer admitir isso hoje em dia, pois seria reconhecer que a transição política, no Brasil, deveu-se mais a um conchavo de generais do que às "grandes manifestações populares", das quais todos se dizem os guias e mentores. Todos querem tirar uma casquinha da redemocratização.

Quando Geisel sai de cena e começa o governo do último presidente militar, o do general João Figueiredo (1979-1985), todas as condições estavam dadas para a redemocratização do País. Tanto que o governo Figueiredo, às voltas com a crise econômica, foi um anticlímax de desmoralização, terminando melancolicamente, pela porta dos fundos.

Mais importante ainda: o fim da ditadura militar no Brasil deve-se ao próprio caráter político do regime. Sendo um regime autoritário, que manteve pelo menos uma aparência de legalidade e de alternância política, não tendo criado nenhum partido político (pelo contrário: extinguiu todos, instituindo em seu lugar o bipartidarismo), o regime de 1964 pôde evoluir, embora de forma atabalhoada e não sem obstáculos, rumo à democracia parlamentar. Assim como evoluíram, de uma maneira ou de outra, todas as ditaduras militares sul-americanas. Em um regime totalitário, baseado no domínio do partido único e na repressão absoluta sobre todos os aspectos da sociedade, como o de Cuba ou o da ex-URSS, ao contrário, não existe essa possibilidade: ou ele desaparece, ou se perpetua. Os militares brasileiros, chilenos e uruguaios concordaram em sair de cena e em devolver o poder à sociedade. E Fidel e Raúl Castro, quando farão isso?

As denúncias de tortura, os discursos dos parlamentares da ala autêntica do MDB, as publicações da imprensa de oposição e as manifestações populares tiveram certamente um papel, e um papel importante, no processo de distensão política, e nada disso deve ser desprezado. Mas tudo isso está longe de ter sido o principal fator responsável pela restauração das liberdades democráticas. Mais determinante do que todos esses fatores foi, sem dúvida, o jogo político verificado no interior do próprio sistema repressivo criado a partir de 1964, com a cisão entre "duros" e "moderados". Mais ainda, foi o próprio caráter do regime militar - autoritário, e não totalitário - que trouxe consigo o germe de sua própria dissolução.

Repetindo, caso não tenha ficado claro: as manifestações da oposição legal foram importantes. Algumas delas, heróicas até. Mas não foram o fator decisivo. Não teria havido Anistia, nem diretas-já, nem qualquer outra manifestação de protesto, não tivesse sido o fim da censura e a revogação do AI-5. E isso só ocorreu devido à própria evolução do regime, de cima para baixo, e não de baixo para cima.

Certamente, não é muito edificante, nem algo muito positivo para a auto-estima de muitos políticos brasileiros, admitir o que está escrito acima. Mas é preciso dizê-lo, para o bem da honestidade intelectual e da verdade histórica. Nem o MDB, nem o movimento estudantil, nem os sindicatos, nem os intelectuais, nem a Igreja dita "progressista", nem o PT, nem, muito menos, a luta armada foram responsáveis pela redemocratização do Brasil. A democracia brasileira não tem pai nem dono. A História também não.

3 comentários:

Anônimo disse...

Pena que os jovens não leiam sua postagem, vivem malhando uma coisa que nem conheceram e só sabem o que lhes disseram e alguns até acreditam que os militares simplesmente tomaram o poder sem que o povo, políticos, religiosos e outros praticamente exigissem a intervenção, ficam glorificando verdadeiros terroristas que na verdade só colocaram lenha na ditadura
Parabéns pela postagem e torço que muitos que não conhecem a história como verdadeiramente aconteceu leiam e parem de endeusar quem não merece

Anônimo disse...

muito show, adorei seu blog

Anônimo disse...

consegui tirar minhas duvidas e parabenizo a matéria, muito esclarecedora para quem procura a verdade.