quarta-feira, setembro 09, 2009

AS DUAS TRAIÇÕES DO "CABO" ANSELMO

Reproduzo a seguir texto de Olavo de Carvalho, publicado ontem, 08/09, no Diário do Comércio. O leitor curioso verá que muita coisa que ele diz eu já adiantei em dois posts meus anteriores, o que mostra que estou longe de ser um mero repetidor, como alguém chegou a insinuar outro dia, do pensamento do "filósofo autonomeado" e maior inimigo das esquerdas brasileiras. Não sou "olavete", assim como não sou "reinaldete" ou "mainardete". Mas, se quiserem pensar assim, fiquem à vontade, não dou a mínima.
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Na verdade, como já escrevi aqui, tenho algumas divergências pontuais com O. de C. Mas, para o caso que aqui interessa, isso é irrelevante. O texto dele sobre a entrevista que o "Cabo" Anselmo deu na TV Bandeirantes é, como tudo o mais que ele escreve, preciso, incisivo, quase brutal em sua sinceridade. Prestem atenção a como Anselmo responde à pergunta de se ele se considera um traidor: é uma das respostas mais cortantes que alguém já deu a um entrevistador.
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De fato, sempre que o tema dos "anos de chumbo" da ditadura militar é retomado, o que se vê é uma duplicidade moral, uma tendência quase automática a condenar a "direita" e enaltecer os feitos da "esquerda", tida como sacrossanta e inatacável. O texto de Olavo de Carvalho ajuda a demolir esse mito, mostrando que, quando se fala do "Cabo" Anselmo, o que vem à mente é sua traição à luta armada de esquerda, quando ele foi, na verdade, duplamente traidor - da esquerda radical e, principalmente, das Forças Armadas: primeiro em 1964, como líder da baderna que levou à queda do governo Goulart; depois, ao passar para o lado de uma organização terrorista de extrema esquerda, que lutava para transformar o Brasil numa nova Cuba ou numa Coréia do Norte.
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Os entrevistadores, infelizmente, não foram capazes de se colocar acima da visão simplista e grosseira difundida pelas esquerdas: preferiram focar no Anselmo "traidor da luta armada", não no Anselmo líder da revolta dos marinheiros ou guerrilheiro castrista. Também quase não tocaram nos motivos ideológicos que levaram Anselmo a trocar de lado - a desilusão com o socialismo quando esteve em Cuba, antes de retornar ao Brasil e ser preso. Se é verdade que ele aceitou ser informante da polícia por medo de morrer, não é menos verdadeiro que ele o fez também por não querer para o Brasil o mesmo que viu na ilha-prisão dos irmãos Castro, onde sobra censura e falta até papel higiênico.
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Se há algo que a histórica entrevista de Anselmo demonstrou com exatidão, é que os jornalistas brasileiros estão escravizados a um duplo código moral, como diz O. de C.: um para a "direita" - implacável, radical, intransigente - e outro, para a "esquerda" - a quem absolutamente tudo é permitido. Poucas vezes se viu maior duplicidade, maior servilismo, ainda que involuntário, aos cânones esquerdistas.
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Leiam - e vejam - e tirem suas próprias conclusões. Os grifos são meus.

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DOIS CÓDIGOS MORAIS

A entrevista do Cabo Anselmo ao programa “Canal Livre” (TV Bandeirantes, 26 de agosto, http://www.averdadesufocada.com/index.php?option=com_content&task=view&id=2267&Itemid=34) é um dos documentos mais importantes sobre a história das últimas décadas e mereceria uma análise detalhada, que não cabe nas dimensões de um artigo de jornal. Limito-me, portanto, a chamar a atenção do leitor para um detalhe: o confronto do entrevistado com os jornalistas foi, por si, um acontecimento revelador, talvez até mais que o depoimento propriamente dito.
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Logo de início, o apresentador Boris Casoy perguntou se Anselmo se considerava um traidor. Ele aludia, é claro, ao fato de que o personagem abandonara um grupo terrorista para transformar-se em informante da polícia. Para grande surpresa do jornalista, o entrevistado respondeu que sim, que era um traidor, que traíra seu juramento às Forças Armadas para aderir a uma organização revolucionária. A distância entre duas mentalidades não poderia revelar-se mais clara e mais intransponível. Para a classe jornalística brasileira em peso, o compromisso de um soldado para com as Forças Armadas não significa nada; não há desdouro em rompê-lo. Já uma organização comunista, esta sim é uma autoridade moral que, uma vez aceita, sela um compromisso sagrado. Nenhum jornalista brasileiro chama de traidor o capitão Lamarca, que desertou do Exército levando armas roubadas, para matar seus ex-companheiros de farda. Traidor é Anselmo, que se voltou contra a guerrilha após tê-la servido. Anselmo desmontou num instante a armadilha semântica, mostrando que existe outra escala de valores além daquela que o jornalismo brasileiro, com ares da maior inocência, vende como única, universal e obrigatória.
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O contraste mostrou-se ainda mais flagrante quando o jornalista Fernando Mitre, com mal disfarçada indignação, perguntou se Anselmo não poderia simplesmente ter abandonado a esquerda armada e ido para casa, em vez de passar a combatê-la. Em si, a pergunta era supremamente idiota: ninguém – muito menos um jornalista experiente – pode ser ingênuo o bastante para imaginar que uma organização revolucionária clandestina em guerra é um clube de onde se sai quando se quer, sem sofrer represália ou sem entregar-se ao outro lado. Conhecendo perfeitamente a resposta, Mitre só levantou a questão para passar aos telespectadores a mensagem implícita do seu código moral, o mesmo da quase totalidade dos seus colegas: você pode ter as opiniões que quiser, mas não tem o direito de fazer nada contra os comunistas, mesmo quando eles estão armados e dispostos a tudo. Ser anticomunista é um defeito pessoal que pode ser tolerado na vida privada: na vida pública, sobretudo se passa das opiniões aos atos, é um crime. Não que todos os nossos profissionais de imprensa sejam comunistas: mas raramente se encontra um deles que não odeie o anticomunismo como se ele próprio fosse comunista. Essa afinidade negativa faz com que, no jornalismo brasileiro, a única forma de tolerância admitida seja aquela que Herbert Marcuse denominava “tolerância liberdadora”, isto é: toda a tolerância para com a esquerda, nenhuma para com a direita.
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Mais adiante, ressurgiu na entrevista o episódio do tribunal revolucionário que condenara Anselmo à morte. Avisado por um policial que se tornara seu amigo, Anselmo fugira em tempo, enquanto os executores da sentença, ao chegar à sua casa para matá-lo, eram surpreendidos pela polícia e mortos em tiroteio. De um lado, os entrevistadores, ao abordar o assunto, tomavam como premissa indiscutível a crença de que Anselmo fora responsável por essas mortes, o que é materialmente absurdo, já que troca o receptor pelo emissor da informação. De outro lado, todos se mostraram indignados – contra Anselmo – de que no confronto com a polícia morresse, entre outros membros do tribunal revolucionário, a namorada do próprio Anselmo. Em contraste, nenhum deu o menor sinal de enxergar algo de mau em que a moça tramasse com seus companheiros a morte do namorado. Entendem como funciona a “tolerância libertadora”?
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A quase inocência com que premissas esquerdistas não-declaradas modelam a interpretação dos fatos na nossa mídia mostra que, independentemente das crenças conscientes de cada qual, praticamente todos ali são escravos mentais da auto-idolatria comunista.
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Ao longo de toda a conversa, os jornalistas se mantiveram inflexivelmente fiéis à lenda de que os guerrilheiros dos anos 70 eram jovens idealistas em luta contra uma ditadura militar, como se não estivessem entrevistando, precisamente, a testemunha direta de que a guerrilha fôra, na verdade, parte de um gigantesco e bilionário esquema de revolução comunista continental e mundial, orientado e subsidiado pelas ditaduras mais sangrentas e genocidas de todos os tempos. Anselmo colaborou com a polícia sob ameaça de morte, é certo, mas persuadido a isso, também, pela sua própria consciência moral: tendo visto a verdade de perto, perdeu todas as ilusões sobre o idealismo e a bondade das organizações revolucionárias – aquelas mesmas ilusões que seus entrevistadores insistiam em repassar ao público como verdades inquestionáveis – e optou pelo mal menor: quem, em sã consciência, pode negar que a ditadura militar brasileira, com todo o seu cortejo de violências e arbitrariedades, foi infinitamente preferível ao governo de tipo cubano ou soviético que os Lamarcas e Marighelas tentavam implantar no Brasil? Ao longo de seus vinte anos de governo militar, o Brasil teve dois mil prisioneiros políticos, o último deles libertado em 1988, enquanto Cuba, com uma população muito menor, teve cem mil, muitos deles na cadeia até hoje, sem acusação formal nem julgamento. A ditadura brasileira matou trezentos terroristas, a cubana matou dezenas de milhares de civis desarmados. Evitar comparações, isolar a violência militar brasileira do contexto internacional para assim realçar artificialmente a impressão de horror que ela causa e poder apresentar colaboradores do genocídio comunista como inofensivos heróis da democracia, tal é a regra máxima, a cláusula pétrea do jornalismo brasileiro ao falar das décadas de 60-70. Boris Casoy, Fernando Mitre e Antonio Teles seguiram a norma à risca. Desta vez, porém, o artificialismo da operação se desfez em pó ao chocar-se contra a resistência inabalável de uma testemunha sincera.
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Conhecendo as muitas complexidades e nuances da sua escolha, Anselmo revelou, no programa, a consciência moral madura de um homem que, escorraçado da sociedade, preferiu dedicar-se à meditação séria do seu passado e da História em vez de comprazer-se na autovitimização teatral, interesseira e calhorda, que hoje rende bilhões aos ex-terroristas enquanto suas vítimas não recebem nem um pedido de desculpas.
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Moral e intelectualmente, ele se mostrou muito superior a seus entrevistadores, cuja visão da história das últimas décadas se resume ao conjunto de estereótipos pueris infindavelmente repetidos pela mídia e consumidos por ela própria. O fato de que até Boris Casoy, não sendo de maneira alguma um homem de esquerda, pareça ter-se deixado persuadir por esses estereótipos, ilustra até que ponto a pressão moral do meio tornou impossível a liberdade de pensamento no ambiente jornalístico brasileiro.

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